Decisão histórica reconhece direito de pessoa não-binária à identidade autopercebida, mesmo sem legislação específica
Em decisão inédita e unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou, nesta terça-feira (7), que uma pessoa seja registrada oficialmente com gênero neutro. O julgamento marca um avanço no reconhecimento de identidades não-binárias no Brasil e estabelece um importante precedente para casos semelhantes.
O caso envolveu uma pessoa que, após passar por cirurgias e tratamento hormonal para adequação de gênero, percebeu que não se identificava nem como homem nem como mulher. Diante disso, buscou na Justiça o direito de ser reconhecida como gênero neutro.
A relatora do processo, ministra Nancy Andrighi, destacou a complexidade da situação e o sofrimento enfrentado pela pessoa requerente. “A pessoa usufruía de um sexo, pediu para alterar para outro, inclusive com cirurgia e hormônios […] Não era aquilo que estava passando no coração e na cabeça dela. Eu fiz uma pesquisa, a questão é muito dramática”, afirmou.
Para Andrighi, a decisão reflete um olhar mais humanizado da Justiça diante das múltiplas expressões de identidade de gênero. “Esse ser humano deve estar sofrendo muito. Converter-se naquilo que ela imaginava que seria bom e depois perceber que também não era aquilo… não deu certo”, completou.
Sem lei específica, mas com respaldo constitucional
Apesar de o Brasil ainda não contar com uma legislação específica que regulamente o uso do gênero neutro em registros civis, os ministros do STJ basearam sua decisão no direito fundamental à dignidade da pessoa humana e no reconhecimento da identidade autopercebida, já respaldados por precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF).
A ministra Daniela Teixeira reforçou esse entendimento e ressaltou o papel do Judiciário na proteção das pessoas trans e não-binárias. “É o famoso direito à felicidade já chancelado pelo STF. A pessoa trans precisa e merece ser protegida pela sociedade e pelo Judiciário. É dar o direito à autoidentificação, é garantir o mínimo de segurança que pessoas binárias têm desde o nascimento”, afirmou.
Reconhecimento e impacto jurídico
A decisão do STJ representa a primeira vez que o gênero neutro é oficialmente reconhecido em um registro civil no país. O julgamento amplia o entendimento jurídico sobre identidade de gênero, que até então considerava apenas a possibilidade de transição entre os gêneros binários, masculino e feminino.
A medida também contrasta com diretrizes mais restritivas do Conselho Federal de Medicina (CFM), que regulam procedimentos de transição de gênero, e fortalece a compreensão de que a identidade de gênero vai além da conformidade física ou biológica.
Precedente para novos casos
O reconhecimento do gênero neutro pelo STJ abre caminho para que outras pessoas não-binárias possam buscar o mesmo direito na Justiça. A decisão reforça o papel do Judiciário na promoção da inclusão e no respeito à diversidade, sinalizando uma mudança de paradigma na forma como o sistema jurídico brasileiro trata as questões de identidade de gênero.